AQUI MORRE a frase de Terêncio "nada do que é humano me é estranho". Um pai encarcerou a filha na cave durante 24 anos e teve sete filhos dela. Três filhos viveram ao sol e três ficaram na escuridão. Um filho morreu depois de nascer e foi incinerado pelo pai/avô em casa. A avó parece que nunca deu por nada. A história do crime deu várias voltas ao mundo. A cara do "monstro" apareceu publicada, e os jornalistas invadiram a Áustria e a cidadezinha de Amstetten para tentar explicar o inexplicável. Os vizinhos foram entrevistados, nunca suspeitaram, e mais uma vez a população austríaca viu-se acusada de um crime de sequestro e abuso sexual, mais terrível do que o anterior, o da adolescente Natascha Kampusch, encarcerada por um pedófilo que não era seu pai e que se suicidou depois da fuga dela.

A tentação humana é a de encontrar uma explicação humana, ou moral, para este crime. Os polícias que divulgaram os pormenores mostraram uma cara embaraçada e os jornais falaram no maior crime jamais cometido, algo com uma dimensão Auschwitziana, destruidora dos racionalismos em que assenta a visão da humanidade. Neste caso parecem convergir todos os horrores, uma espécie de súmula de toda a violência que pode ser exercida sobre uma mulher. Dizer que o homem e a sua cara e o seu crime são repugnantes não basta, dizer que na Áustria se passam coisas estranhas também não. A Áustria é o grande país silencioso da Europa unida, o país onde não há sobressaltos nem questões sociais, onde não há notícias nem catástrofes, confortável e amarrado a uma placidez burguesa que aprecia a ordem e a arte e deixa o drama e a paixão para as ideias. Paisagem de cartão de Natal, com neve, abetos, montanhas e regatos, Mozart em Salzburgo, valsas de Strauss, concerto de Ano Novo, estâncias de esqui, ópera e Sachertorte. E Sissi, a imperatriz trágica. A placidez de Viena, superficial e enganadora, esconde uma cidade que foi palco dos grandes dramas da história social e política dos séculos XIX e XX, e que foi o berço de algumas das ideias e das filosofias mais inovadoras (e perigosas) da história do homem. O que diria o velho Freud deste crime? O que diriam Stefan Zweig e Elias Canetti? E, mais perto de nós, o que diriam Peter Handke e Thomas Bernhard? Ou a Prémio Nobel Elfriede Jelinek? Ou Leopold Sacher-Masoch, inventor científico da relação entre o escravo e o seu dono?

Depois de Hitler e do Anschluss, a Áustria desapareceu do mapa submersa em culpa e expiação, fingindo que não existia e coleccionando nota de bom comportamento. O modo como os escritores austríacos trataram o problema da consciência moral e do mal e os escritores alemães o fizeram é distinto e antagónico. Na Alemanha, nasceram as vozes dominantes dos grandes moralistas como Heinrich Böll, Günter Grass ou mesmo Hans Magnus Enszensberger, dotados de um raciocínio sistemático que condena a loucura niilista da aniquilação e do exercício do poder pelo poder, tão apreciado por Nietzsche, pai espiritual da "malaise" austríaca. A destruição da espiritualidade e da religião, sobretudo do cristianismo, como exemplos do triunfo da mentalidade da vítima que se apropria do poder, justamente pela construção do discurso piedoso da vitimização como um discurso de superioridade moral, teve em Nietzsche e na invenção do niilismo nietzscheano a expressão máxima e mais difundida. De certo modo, os austríacos que pensam e escrevem nunca conseguiram libertar-se de Nietzsche e da sua sombra como nunca conseguiram libertar-se de Hitler. A Áustria inventou a culpa freudiana, pós-judaico-cristã. E foi o território onde o catolicismo viu o rosto de Deus extinto e se aliou ao totalitarismo, e onde o judaísmo viu a face do exterminador. Muitos suicídios se seguiram a estas revelações, que resultaram em parte da extensão megalómana do Império Austro-húngaro, que atravessava toda a Mitteleurope e constituía, com a grande Alemanha, a "intelligentsia" da época.

O mal-estar austríaco e o pessimismo ontológico que gerou são visíveis em Handke e Bernhard, que odiavam a Áustria e a hipocrisia austríaca que guarda os pecados na cave, como eram visíveis em Musil e Broch. Um livro chamado "O Homem sem Qualidades" é, como diriam os franceses, todo um programa. As relações de poder entre vítima e carrasco, amo e escravo, são um tema que atravessa a literatura austríaca, e atravessam-na sem conclusões piedosas ou desculpabilizantes. Bernhard morreu proibindo as obras póstumas de serem publicadas na Áustria, as peças representadas. Morreu odiando o país que era seu com uma veemência que enformou toda a sua obra, como a doença a enformou. Peter Handke, o mais recente avatar desta escola, tornou-se um autor alemão, acabando por cair em desgraça junto dos alemães por causa da defesa de Slobodan Milosevic. A história repete-se como tragédia, e a Alemanha não podia dar o Prémio Heinrich Heine a um austríaco que quer explicar o mundo sem recuso ao humanismo ocidental, judaico-cristão, iluminista ou religioso. Graham Greene, um católico que gostava de suicidar os moralistas e perdoar os amorais, situou "O Terceiro Homem", pequena fábula do ser amoral, em Viena. A Áustria carrega pesada herança.

Por Clara Ferreira Alves

publicado por damasceno às 14:48